segunda-feira, janeiro 15, 2024

Regresso


Já faz quase dez anos desde a última vez que eu ouvi pelo telefone as suas sandices e a sua vontade de ir embora do mundo. Tudo parece caminhar para um doloroso fim que já aprendeu a nem doer. Você não faz falta e talvez por isso eu não saiba brigar pela sua presença. Eu quis gritar, te mandar crescer, trancar as portas da sua casa e esperar que em algum momento você se lembrasse de que precisa dar conta de ser gente. Mas nada fiz. Volto pra casa com esse vazio no peito que ao mesmo tempo parece tão cheio de mágoa e tristeza. Por aqui, agora, é que tudo é desespero e lágrima. 


sábado, dezembro 30, 2023


Não sei quando começou, talvez sempre tenha sido assim. Desde que eu me lembro, minhas mãos tremem sempre que conheço pessoas novas. As frases, antes que saiam da minha boca, passam pelo menos dez vezes pela minha cabeça. Dançar é como subir o Everest. Falar ao telefone, idem. Eu nunca aprendi a gritar. Acordar à noite sempre significou não dormir mais. Eu pareço sempre calma, mas dentro de mim há um turbilhão enorme. É como se eu fosse explodir. Acordar pode significar falta de ar. Assim como ir à uma festa, fazer uma apresentação, entrar numa piscina, ou mesmo ir à padaria. E aí, vocês me pedem pra "ser leve". E eu só queria poder ser. Mas a ansiedade social levou a minha leveza e as palavras da minha boca. Em troca, me comprou tremores e lençóis quentes. Comeu a minha segurança, o meu crédito nos dias solares. Trancou todas as portas, mas não tapou os meus ouvidos. E eu ainda posso ouvir os gritos de fora. A ansiedade levou o meu reflexo, minhas unhas e mantém os meus cabelos espalhados pela casa. Fumou os (meus) cigarros e cortou a minha pele. Acordou o demônio da nulidade, o demônio da insensatez, o demônio do ciúme, o demônio da morte. Não satisfeita, me roubou as horas de sono e o limite do parapeito da janela. Desatinada por me ver dormir, atravessou os meus órgãos e construiu minuciosamente um vulcão em constante quase erupção. Travou os meus pés ao som da minha música preferida. A ansiedade só não me comeu o medo. Exato contrário: o alimenta como quem quer dar cabo a sua fome inacabável e me põe aqui, eternamente presa às suas gélidas garras. 

sexta-feira, dezembro 29, 2023

Sala de estar


Hoje eu li um texto sobre bandas que acabaram nos últimos tempos e reparei que duas delas eram nossas preferidas. Quando li a notícia ela pareceu falar sobre mim. Sobre esses anos que passaram enquanto eu estive aqui, sentada à beira do sonho. Ilusoriamente buscando pedaços de nós. A verdade é que não encontro nada. Nada além de umas memórias escritas ou cantadas, que ficaram como recordações. Algumas delas, cativas do tempo, já ficam turvas, como se parte dum filme que se viu há muitos anos. Mas há sempre algo que fica. Quando você me visitou no primeiro dia depois de termos nos despido de alma e corpo, tocava Cranberries na sala de estar. Não é engraçado esse termo? Os nomes das salas quase sempre nos dizem o que fazer: numa se janta, noutra se espera por algo que virá. Nessa não há nada que se faça: é sobre permanecer, apenas. Talvez por isso eu tenha nítidas lembranças de todas as vezes em que te vi sentado no meu sofá, com olhos inquietos e desejosos. Será que aí do outro lado você se lembra? Será que também levantou no meio da madrugada e depois, de olhos pregados no teto, lembrou qualquer coisa de nós? Será que em algum dia dos últimos dez anos você quis ter estado de novo na minha sala estar?

quarta-feira, dezembro 11, 2019

A sujeira lá atrás

Saindo do festival, haviam duas mulheres vendendo doces. Comprei chicletes e uma delas perguntou: 
- Demora aí dentro? - Eu respondi que provavelmente sim. 
O vento bagunçou o meu cabelo e a outra disse: 
- Segura o cabelão bonito! 
Eu sorri e comentei algo aleatório sobre o clima, a noite, qualquer coisa que me deixasse entretida enquanto esperava o uber pra casa. Daí ela desceu dum carro. Vestida como uma rockstar. Nariz em pé, sorrindo. As vendedoras perguntaram, de onde estavam: 
- Doce pra adoçar a vida, menina? 
Qual (não) foi a minha surpresa quando a criatura ignorou completamente as mulheres e entrou, jogando os longos cabelos lisos para trás. Afinal, doce a vida dela já era. As mulheres, perplexas, começaram a tecer comentários. "Olha como ela joga o cabelo, como empina o nariz", "essa metidez só dura até ficar de barriga", "que nada, deve ser rica, tem dinheiro pra ser bonita até o fim da vida". "Dinheiro pra ser bonita até o fim da vida"... Ai, caramba! Entrei no carro e não disse uma só palavra. Não disse porque na minha cabeça só uma frase ecoava: "dinheiro para ser bonita até o fim da vida". Lembrei que certa vez, no mesmíssimo festival em outro ano, um fotógrafo pediu pra tirar uma foto dela. Após fotografá-la ele disse algo como "depois eu limpo a sujeira lá atrás". Eu limpo. A sujeira. A "sujeira" a qual o (renomado) fotógrafo se referia eram pessoas. Gente. Gente que não tem dinheiro para ser bonita até o fim da vida, gente que nunca foi sequer considerada bonita. A sujeira da foto era quem, em momentos em que se reclama o lugar de "não sou, até tenho amigos que são" ela chama de amigos. 
Desde aquele dia quero escrever sobre isso. Mas quero falar tanto mais do que falo aqui, que nunca soube começar. Ainda não sei. Queria poder saber fazer algo sobre além de desabafar nesse espaço. Queria que a única possibilidade não fosse fazê-lo. Queria que a "sujeira" se soubesse "não sujeira", mas que soubesse, também, que aquela moça ouviu atentamente o que o fotógrafo falou. E deu de ombros. 

sábado, janeiro 19, 2019

sábado, outubro 10, 2015

Dos reinados



Hoje, em meio à minha espera no ponto de ônibus, um homem de meia idade me encarou sorrindo e cantando "uma pirueta, duas piruetas, bravo, bravo", como se estivesse num espetáculo circense. Eu sorri de volta e o segui com o olhar. Ele atravessou a rua correndo em frente aos carros em movimento em pleno meio dia na avenida Getúlio Vargas. O rapaz ao meu lado comentou com uma moça "depois morre e não sabe o porquê, esses loucos, hum, eu não sei não...". Como se não bastasse, no alto da sua prepotência, iniciou uma conversa sobre pessoas aptas a alfabetizar outras e disse "eu, que tenho mais estudo, sei que tenho competência para ensinar, não sou qualquer um". O "moço das piruetas" já corria serelepe no outro lado da avenida e eu só conseguia me lembrar do rei chatíssimo do Pequeno Príncipe, que estava ocupado demais governando pra ninguém. Como são chatos e tolos os reis de nada do cotidiano.

sábado, maio 23, 2015

"Mariquinha, vai se vestir!"

Foto por: Chris Arruda


Ela ouvia, fazia cara de quem nem se importava. Era isso: Ser independente de qualquer limitação. Morre, na minha cidade, "a louca". Quantas vezes ouvi essa expressão e usei como quem divide o mundo entre os normais e os loucos? Lembro que certa vez discuti sobre a nudez de Mariquinha. Fiquei vendo os olhos na mesa cheios de vontade de limitar, regrar, problematizar. Pouco sabem que a nudez de Mariquinha é a de quem não sabe mais, porque esqueceu que um dia foi ensinada que nudez é proibida. E louca não sou eu que ando vestida sem querer estar? Loucos não somos nós que acordamos todos os dias sem querer acordar, comemos o que não queremos comer? Vivemos incompletos, insatisfeitos, buscando qualquer coisa que não sabemos o que é, mas que se afigura com um buraco enorme no peito. A gente faz um esforço danado pra ser livre, e esquece que a liberdade está em saber ser sem dificuldade. Mariquinha foi-se embora como era: sem dor. Sem medo. Perto de Deus. Tão perto de Deus e tão singular que faz as pessoas rirem diante da morte. Tão livre que não coube nesse mundo pequeno.