quarta-feira, dezembro 11, 2019

A sujeira lá atrás

Saindo do festival, haviam duas mulheres vendendo doces. Comprei chicletes e uma delas perguntou: 
- Demora aí dentro? - Eu respondi que provavelmente sim. 
O vento bagunçou o meu cabelo e a outra disse: 
- Segura o cabelão bonito! 
Eu sorri e comentei algo aleatório sobre o clima, a noite, qualquer coisa que me deixasse entretida enquanto esperava o uber pra casa. Daí ela desceu dum carro. Vestida como uma rockstar. Nariz em pé, sorrindo. As vendedoras perguntaram, de onde estavam: 
- Doce pra adoçar a vida, menina? 
Qual (não) foi a minha surpresa quando a criatura ignorou completamente as mulheres e entrou, jogando os longos cabelos lisos para trás. Afinal, doce a vida dela já era. As mulheres, perplexas, começaram a tecer comentários. "Olha como ela joga o cabelo, como empina o nariz", "essa metidez só dura até ficar de barriga", "que nada, deve ser rica, tem dinheiro pra ser bonita até o fim da vida". "Dinheiro pra ser bonita até o fim da vida"... Ai, caramba! Entrei no carro e não disse uma só palavra. Não disse porque na minha cabeça só uma frase ecoava: "dinheiro para ser bonita até o fim da vida". Lembrei que certa vez, no mesmíssimo festival em outro ano, um fotógrafo pediu pra tirar uma foto dela. Após fotografá-la ele disse algo como "depois eu limpo a sujeira lá atrás". Eu limpo. A sujeira. A "sujeira" a qual o (renomado) fotógrafo se referia eram pessoas. Gente. Gente que não tem dinheiro para ser bonita até o fim da vida, gente que nunca foi sequer considerada bonita. A sujeira da foto era quem, em momentos em que se reclama o lugar de "não sou, até tenho amigos que são" ela chama de amigos. 
Desde aquele dia quero escrever sobre isso. Mas quero falar tanto mais do que falo aqui, que nunca soube começar. Ainda não sei. Queria poder saber fazer algo sobre além de desabafar nesse espaço. Queria que a única possibilidade não fosse fazê-lo. Queria que a "sujeira" se soubesse "não sujeira", mas que soubesse, também, que aquela moça ouviu atentamente o que o fotógrafo falou. E deu de ombros. 

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